TEMATICA VARIADA, COM MAIOR INCIDÊNCIA NA MUSICA GENERALISTA, E NA FOTOGRAFIA, OBVIAMENTE COMO PILAR DE ESTAS DUAS FORMAS DE ARTE, ESTARÁ A POESIA
sábado, 13 de março de 2010
Poética
COM as lágrimas do tempo E a cal do meu dia Eu fiz o cimento Da minha poesia
E na perspectiva Da vida futura Ergui em carne viva Sua arquitetura.
Não sei bem se é casa Se é torre ou se é templo. (Um templo sem Deus.)
Mas é grande e clara Pertence ao seu tempo .... Entrai, irmãos meus!
Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'
TERNURA
Eu te peço perdão por te amar de repente Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente. E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.
(Vinícius de Moraes)
Da Condição Humana
Todos sofremos. O mesmo ferro oculto Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta O mesmo sal nos queima os olhos vivos. Em todos dorme A humanidade que nos foi imposta. Onde nos encontramos, divergimos. É por sermos iguais que nos esquecemos Que foi do mesmo sangue, Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'
Nona Sinfonia
É por dentro de um homem que se ouve o tom mais alto que tiver a vida a glória de cantar que tudo move a força de viver enraivecida.
Num palácio de sons erguem-se as traves que seguram o tecto da alegria pedras que são ao mesmo tempo as aves mais livres que voaram na poesia.
Para o alto se voltam as volutas hieráticas sagradas impolutas dos sons que surgem rangem e se somem.
Mas de baixo é que irrompem absolutas as humanas palavras resolutas. Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'
sexta-feira, 12 de março de 2010
Os Pássaros de Londres
Os pássaros de Londres cantam todo o inverno como se o frio fosse o maior aconchego nos parques arrancados ao trânsito automóvel nas ruas da neve negra sob um céu sempre duro os pássaros de Londres falam de esplendor com que se ergue o estio e a lua se derrama por praças tão sem cor que parecem de pano em jardins germinando sob mantos de gelo como se gelo fora o linho mais bordado ou em casas como aquela onde Rimbaud comeu e dormiu e estendeu a vida desesperada estreita faixa amarela espécie de paralela entre o tudo e o nada os pássaros de Londres
quando termina o dia e o sol consegue um pouco abraçar a cidade à luz razante e forte que dura dois minutos nas árvores que surgem subitamente imensas no ouro verde e negro que é sua densidade ou nos muros sem fim dos bairros deserdados onde não sabes não se vida rogo amor algum dia erguerão do pavimento cínzeo algum claro limite os pássaros de Londres cumprem o seu dever de cidadãos britânicos que nunca nunca viram os céus mediterrânicos
Mário Cesariny, in "Poemas de Londres"
A Humana Súmula
A Piedade deixaria de existir Se não fizéssemos nós os Pobres de pedir; E a Compaixão também acabaria Se a todos, como nós, feliz chegasse o dia.
E a paz se alcança com mútuo terror, Até crescer o egoísmo do amor: A Crueldade tece então a sua rede, E lança seu isco, cuidadosa, adrede.
Senta-se depois com temores sagrados, E de lágrimas os chãos ficam regados; A raiz da Humildade ali então se gera Debaixo do seu pé, atenta, espera.
Em breve sobre a cabeça se lhe estende A sombra daquele Mistério que ofende; É aí que Verme e Mosca se sustentam Do Mistério que ambos acalentam.
E o fruto que gera é o do Engano Doce ao comer e tão malsano; E o Corvo o seu ninho ali o faz No mais espesso da sombra que lhe apraz.
Todos os Deuses, quer da terra quer do mar, P'la Natureza esta Árvore foram procurar; Mas foi em vão esta procura insana, Esta Árvore cresce só na Mente Humana.
William Blake, in "Canções da Experiência"
Paixão Secreta
Acordei com os primeiros pássaros, já minha lâmpada morria. Fui até à janela aberta e sentei-me, com uma grinalda fresca nos cabelos desatados... Ele vinha pelo caminho na névoa cor de rosa da manhã. Trazia ao pescoço uma cadeia de pérolas e o sol batia-lhe na fronte. Parou à minha porta e disse-me ansioso: — Onde está ela? Tive vergonha de lhe dizer: — Sou eu, belo caminhante, sou eu.
Anoitecia e ainda não tinham acendido as luzes. Eu atava o cabelo, desconsolada. Ele chegava no seu carro todo vermelho, aceso pelo sol poente. Trazia o fato cheio de poeira. Fervia a espuma na boca anelante dos seus cavalos... Desceu à minha porta e disse-me com voz cansada: — Onde está ela? Tive vergonha de lhe dizer: — Sou eu, fatigado caminhante, sou eu.
Noite de Abril. A lâmpada arde neste meu quarto que a brisa do Sul enche suavemente. O papagaio palrador dorme na sua gaiola. O meu vestido é azul como o pescoço dum pavão, e o manto verde como a erva nova. Sentada no chão, perto da janela, olho a rua deserta ... Passa a noite escura e não me canso de cantar: — Sou eu, caminhante sem esperança, sou eu.
Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"
quinta-feira, 11 de março de 2010
O Poeta é um Guardador
o poeta é um guardador
guarda a diferença guarda da indiferença
no incerto guarda a certeza da voz
Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"
O Sonho
Amor querido, por nada menos que tu Teria eu interrompido este sonho feliz: Era um tema Para a razão, demasiado forte para fantasia. Portanto, sabiamente, me acordaste; porém O meu sonho não terminou, continuou contigo. És tão verdadeira que bastam os pensamentos de ti Para tornar sonhos realidade, fábulas em história. Vem a meus braços, pois se pensaste ser melhor Que não sonhasse todo o meu sonho, concretizemos o resto.
Como o relâmpago, ou a luz da vela, Teus olhos, e não o teu ruído, me acordaram; Porém pensei que eras (Tu que amas a verdade) um Anjo — à primeira vista. Mas quando vi que vias o meu coração E os meus pensamentos, para além da arte do anjo, Como sabias do meu sonho, como sabias quando O excesso de gozo me acordaria, e então vieste, Devo confessar que no mínimo, seria Ultrajante, pensar-te outra coisa que não tu.
Vindo e ficando mostrou-me que tu és tu. Mas o levantares-te faz-me duvidar, e temo agora Que tu já não sejas tu. E fraco o amor quando o medo é tão forte como ele; Não é todo espírito puro e corajoso Se mistura tem de medo, vergonha, ou honra. Talvez como os fachos que, já preparados, Os homens acendem e apagam, me trates tu: Vieste para inflamar, partiste para voltar. Então Sonharei esse desejo outra vez, senão desfaleceria.
John Donne, in "Poemas Eróticos"
O Indiferente
Posso amar tanto louras como morenas, A que cede à abundância e a que trai por pobreza, A que busca a solidão e a que se mascara e brinca, Aquela que o campo cultivou e a da cidade, A que acredita, e a que hesita, A que ainda lacrimeja com olhos esponjosos, E a rolha seca que nunca chora. Eu posso amar essa e esta, e tu, e tu, Posso amar qualquer uma, desde que não seja leal.
Nenhum outro vício vos satisfará? Não vos será útil fazer como as vossas mães? Ou, gastos todos os velhos vícios, inventaram novos? Ou atormenta-vos o medo de que os homens sejam fiéis? Oh, não o somos, não o sejais vós também, Deixai-me conhecer, eu e vós, mais de vinte. Roubem-me, mas não me prendam, deixai-me ir. Devo eu, que vim a estas dores através de vós Tornar-me vosso fiel súbdito, porque sois leais?
Vénus ouviu-me suspirar esta canção, E pela maior doçura do amor, a variedade, jurou Que a não ouvira até então, e não mais seria assim. E foi-se, investigou, e depressa regressando Disse: «Enfim, existem umas duas ou três Pobres heréticas do amor Que pretendem instaurar a perigosa constância. Mas eu disse-lhes: Dado que pretendeis ser leais, Sereis leais para com aqueles que vos sejam falsos.»
John Donne, in "Poemas Eróticos"
Mania da Solidão
Como um jantar frugal junto à clara janela, Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu. Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam ao fim de pouco tempo em pleno campo. Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo; o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.
Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar a terra na ancha planura. As estrelas são vivas, mas não valem estas cerejas que como sozinho. Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos. Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo. Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.
Cada coisa está isolada ante os meus sentidos, que a aceita impassível: um cicio de silêncio. Cada coisa na escuridão posso sabê-la, como sei que o meu sangue circula nas veias. A planura é água que escorre entre a erva, um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias com todas as coisas que vivem nesta planura.
A noite importa pouco. O rectângulo de céu sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda debate-se no vazio, longe dos alimentos, das casas, distinta. Não se basta a si mesma e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho, o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.
Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
quarta-feira, 10 de março de 2010
Um Poeta
Um poeta É um ser único Em montes de exemplares Que só pensa em versos. E só escreve em música Sobre assuntos diversos Uns vermelhos outros verdes Mas sempre magníficos
Boris Vian, in "Não Queria Patear"
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Se os Poetas Fossem Menos Patetas
Se os poetas fossem menos patetas E se fossem menos preguiçosos Faziam toda a gente feliz Para poderem tratar em paz Dos seus sofrimentos literários Construíam casas amarelas Com grandes jardins à frente E árvores cheias de zaves De mirliflautas e lizores De melfiarufos e toutiverdes De plumuchos e picapães E pequenos corvos vermelhos Que soubessem ler a sina Havia grandes repuxos Com luzes por dentro Havia duzentos peixes Desde o crusco ao ramussão Da libela ao papamula Da orfia ao rara curul E da alvela ao canissão Havia um ar novo Perfumado do odor das folhas Comia-se quando se quisesse E trabalhava-se sem pressa A construir escadarias De formas antes nunca vistas Com madeiras raiadas de lilás Lisas como ela sob os dedos
Mas os poetas são uns patetas Escrevem para começar Em vez de se porem a trabalhar E isso traz-lhes um remorso Que conservam até à morte Encantados de ter sofrido tanto Dedicam-lhes grandes discursos E são esquecidos num dia Mas se trabalhassem mais Só seriam esquecidos em dois
Boris Vian, in "Não Queria Patear"
Mentir-me não Adianta
Vieram hoje dizer-me mentiras a meu respeito, mas nunca podem esconder-me o que lhes vai lá no peito.
Só quero hoje a verdade, mais nua que ave perdida... Os sinos tangem-me a idade na alta torre da vida.
Mentiras, fora daqui! Ide acampar noutra parte! Existe um espelho que ri, ao desnudar-vos com arte.
Palavras, gestos, partissem, morressem antes do dia! Humildes, se diluíssem na madrugada bem fria.
Deixai-me as cordas do sino de me sentir como sou. Puxando-as, oiço o menino que nas entranhas ficou.
Idade! Já tenho tanta! Nasci num dia riscado do calendário do Tempo. O meu destino é dobrado, mentir-me não adianta!
Isabel Gouveia, in "Os Sete Dias Passados"
Saudação aos que Vão Ficar
Como será o Brasil no ano dois mil? As crianças de hoje, já velhinhas então, lembrarão com saudade deste antigo país, desta velha cidade? Que emoção, que saudade, terá a juventude, acabada a gravidade? Respeitarão os papais cheios de mocidade? Que diferença haverá entre o avô e o neto? Que novas relações e enganos inventarão entre si os seres desumanos? Que lei impedirá, libertada a molécula que o homem, cheio de ardor, atravesse paredes, buscando seu amor? Que lei de tráfego impedirá um inquilino - ante o lugar que vence - de voar para lugar distante na casa que não lhe pertence? Haverá mais lágrimas ou mais sorrisos? Mais loucura ou mais juízo? E o que será loucura? E o que será juízo? A propriedade, será um roubo? O roubo, o que será? Poderemos crescer todos bonitos? E o belo não passará então a ser feiura? Haverá entre os povos uma proibição de criar pessoas com mais de um metro e oitenta? Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos) não farão às ocultas, homens especiais que, de repente, possam duplicar o próprio tamanho? Quem morará no Brasil, no ano dois mil? Que pensará o imbecil no ano dois mil? Haverá imbecis? Militares ou civis? Que restará a sonhar para o ano três mil ao ano dois mil?
Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"
terça-feira, 9 de março de 2010
(...)
Era mais bela! O seio palpitando... Negros olhos as pálpebras abrindo... Formas nuas no leito resvalando...
Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti – as noites eu velei chorando, Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!
Já em Castro Alves, a mulher fatal já está muito perto do inferno. Entrega-se à luxúria seduzindo a todos sem pudor, alimenta-se do sofrimento do que a ama, é o protótipo da vampira que fere muito além da troça; ataca a moral ignorando-a simplesmente, é fria e cruel diante do sofrimento do outro. Em Fabíola, ela é realmente essa assassina lasciva que rega as plantas com o sange do que deveria ser seu bem-amado:
Como teu riso dói... como na treva Os lêmures respondem no infinito: Tens o aspecto do pássaro maldito, Que em sânie de cadáveres se ceva!
Filha da noite! A ventania leva Um soluço de amor pungente, aflito... Fabíola!... É teu nome!... Escuta é um grito, Que lacerante para os céus s'eleva!...
E tu folgas, Bacante dos amores, E a orgia que a mantilha te arregaça, Enche a noite de horror, de mais horrores...
É sangue, que referve-te na taça! É sangue, que borrifa-te estas flores! E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!
Também o conhecidamente frio poeta parnasiano foi vitima desta mulher sedutora mesmo entre os panteões gregos. Em Messalina, Olavo Bilac nos apresenta uma mulher uma mulher que vive entre as ruínas, imperiosa, nobre sobre toda a destruição que a orgia ao redor provoca. Messalina figura poderosa, fascina por sua beleza, sua libertinagem e pelo sangue que derrama, amedrontando.
Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias Do passado. Minh'alma se transporta À Roma antiga, e da cidade morta Dos Césares reanima as cinzas frias;
Triclínios e vivendas luzidias Percorre; pára de Suburra à porta, E o confuso clamor escuta, absorta, Das desvairadas e febris orgias.
Aí, num trono erecto sobre a ruína De um povo inteiro, tendo à fronte impura O diadema imperial de Messalina,
Vejo-te bela, estátua da loucura! Erguendo no ar a mão nervosa e fina, Tinta de sangue, que um punhal segura.
Eu Peneiro o Espírito e Crivo o Ritmo
Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo Do sangue no amor, o movimento para fora O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos Sentidos da palavra que sopra a sua voz Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto E encontro O silêncio inigualável de quem escuta
Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual Ao da cítara
Eu peneiro as entranhas e encontro a dor De quem toca a cítara. A frágil raiz De quem criva horas e horas a vida e encontra A corda mais azul, a veia inesgotável De quem ama Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta
Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva
O músico incompleto peneira a ideia das formas Eu sopro a água viva. Crivo O sofrimento demorado do canto Encontro o mistério Da cítara
Daniel Faria, in "Dos Líquidos"
Eu Peneiro o Espírito e Crivo o Ritmo
Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo Do sangue no amor, o movimento para fora O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos Sentidos da palavra que sopra a sua voz Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto E encontro O silêncio inigualável de quem escuta
Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual Ao da cítara
Eu peneiro as entranhas e encontro a dor De quem toca a cítara. A frágil raiz De quem criva horas e horas a vida e encontra A corda mais azul, a veia inesgotável De quem ama Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta
Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva
O músico incompleto peneira a ideia das formas Eu sopro a água viva. Crivo O sofrimento demorado do canto Encontro o mistério Da cítara
Quem Somos
Quem somos, senão o que imperfeitamente sabemos de um passado de vultos mal recortados na neblina opaca, imprecisos rostos mentidos nas páginas antigas de tomos cujas palavras
não são, de certo, as proferidas, ou reproduzem sequer actos e gestos cometidos. Ergue-se a lâmina: metal e terra conhecem o sangue em fronteiras e destinos pouco
a pouco corrigidos na memória indecifrável das areias. A lápide, que nomeia, não descreve e a história que o historia, eco vário e distorcido, é já
diversa e a si própria se entretece na mortalha de conjecturados perfis. Amanhã seremos outros. Por ora nada somos senão o imperfeito limbo da legenda que seremos.
Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"
As Minhas Rosas
Sim! a minha ventura quer dar felicidade; Não é isso que deseja toda a ventura? Quereis colher as minhas rosas? Baixai-vos então, escondei-vos, Entre as rochas e os espinheiros, E chupai muitas vezes os dedos. Porque a minha ventura é maligna, Porque a minha ventura é pérfida. Quereis apanhar as minhas rosas?
Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"
Memória Consentida
Neste lugar sem tempo nem memória, nesta luz absoluta ou absurda, ou só escuridão total, relances há em que creio, ou se me afigura, ter tido, alguma vez, passado
com biografia, onde se misturam datas, nomes, caras, paisagens que, de tão rápidas, me deixam apenas a lembrança agoniada de não mais poder lembrá-las.
Sobra, por vezes, um estilhaço ou fragmento, como o latido de um cão na tarde dolente e comprida de uma remota infância. Ou o indistinto murmúrio de vozes
junto de um rio que, como as vozes, não existe já quando para ele volvo, surpreso, o olhar cansado. Insidiosas, rangem tábuas no soalho, ou é o sussurro brando do vento
no zinco ondulado, na fronde umbrosa dos eucaliptos de perfil no horizonte, com o mar ao fundo. Que soalho, de que casa, que vento em que paragens, onde o mar ao longe que, entrevistos,
os não vejo já ou, sequer, recordo na brevidade do instante cruel? De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem provêm tais sombras melancólicas, ferindo de indecifráveis avisos
este lugar em que, não sendo consentido o coração, se não consentem tempo e memória? Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia desta luz absurda, ou só escuridão total.
Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"
segunda-feira, 8 de março de 2010
Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Fernando Pessoa (Tabacaria)
A Base de Toda a Metafísica
E agora, cavalheiros, eu vos deixo uma palavra que fique nas vossas mentes e nas vossas memórias como princípio e também como fim de toda a metafísica.
(Tal qual o professor aos estudantes ao encerrar o seu curso repleto.)
Tendo estudado antigos e modernos, sistemas dos gregos e dos germânicos, tendo estudado e situado Kant, Fichte, Schelling e Hegel, situado a doutrina de Platão, e Sócrates superior a Platão, e outros ainda superiores a Sócrates buscando pesquisar e situar, tendo estudado bastante o divino Cristo, eu vejo hoje reminiscências daqueles sistemas grego e germânico, deparo todas as filosofias, templos e dogmas cristãos encontro, e mesmo sem chegar a Sócrates eu vejo com absoluta clareza, e sem chegar até o divino Cristo, eu vejo o puro amor do homem por seu camarada, a atração de um amigo pelo amigo, de uma mulher pelo marido e vice-versa quando bem conjugados, de filhos pelos pais, de uma cidade por outra, de uma terra por outra.
Do inquieto oceano da multidão veio a mim uma gota gentilmente suspirando:
— Eu te amo, há longo tempo fiz uma extensa caminhada apenas para te olhar, tocar-te, pois não podia morrer sem te olhar uma vez antes, com o meu temor de perder-te depois.
— Agora nos encontramos e olhamos, estamos salvos, retorna em paz ao oceano, meu amor, também sou parte do oceano, meu amor, não estamos assim tão separados, olha a imensa curvatura, a coesão de tudo tão perfeito! Quanto a mim e a ti, separa-nos o mar irresistível levando-nos algum tempo afastados, embora não possa afastar-nos sempre: não fiques impaciente — um breve espaço e fica certa de que eu saúdo o ar, a terra e o oceano, todos os dias ao pôr-do-sol por tua amada causa, meu amor.
Ó HÍMEN! Ó HIMENEU!
O hímen! O himeneu! Por que, me atormentas assim? Por que, me provocas só durante um breve momento? Por que é que não continuas? Por que, perdes logo a força? Será porque, se durasses além do breve momento, logo me matarias com certeza?
Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
Pensamentos
Da propriedade — como se alguém apto a possuir coisas não pudesse entrar na posse delas à vontade e incorporá-las, a ele ou a ela; da vista — pressupõe um olhar para trás, atravessando o caos em formação a imaginar a evolução, a plenitude, a vida a que se chega na jornada agora (eu porém vejo a estrada continuando, e a jornada sempre a continuar); do que uma vez faltava sobre a terra e que a seu tempo foi propiciado — e do que ainda está por ser propiciado, pois tudo o que eu vejo e sei creio ter seu sentido mais profundo no que ainda está por ser propiciado.
Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
domingo, 7 de março de 2010
blues da morte de amor
já ninguém morre de amor, eu uma vez andei lá perto, estive mesmo quase, era um tempo de humores bem sacudidos, depressões sincopadas, bem graves, minha querida, mas afinal não morri, como se vê, ah, não, passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto no coração, uma tensão no clarinete e tão desgraçado o que senti, mas realmente, mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, eu nunca tive queda para kamikaze, é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa, ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha no lusco-fusco da canção parar à minha casa, o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, minha querida, toda a gente do bairro, e então murmurarei, a ver fugir a escala do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"
Elogio da Distância
Na fonte dos teus olhos vivem os fios dos pescadores do lago da loucura. Na fonte dos teus olhos o mar cumpre a sua promessa.
Aqui, coração que andou entre os homens, arranco do corpo as vestes e o brilho de uma jura:
Mais negro no negro, estou mais nu. Só quando sou falso sou fiel. Sou tu quando sou eu.
Na fonte dos teus olhos ando à deriva sonhando o rapto.
Um fio apanhou um fio: separamo-nos enlaçados.
Na fonte dos teus olhos um enforcado estrangula o baraço.
Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Soneto de Mal Amar
Invento-te recordo-te distorço a tua imagem mal e bem amada sou apenas a forja em que me forço a fazer das palavras tudo ou nada.
A palavra desejo incendiada lambendo a trave mestra do teu corpo a palavra ciúme atormentada a provar-me que ainda não estou morto.
E as coisas que eu não disse? Que não digo: Meu terraço de ausência meu castigo meu pântano de rosas afogadas.
Por ti me reconheço e contradigo chão das palavras mágoa joio e trigo apenas por ternura levedadas.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'
Desespero
Não eram meus os olhos que te olharam Nem este corpo exausto que despi Nem os lábios sedentos que poisaram No mais secreto do que existe em ti.
Não eram meus os dedos que tocaram Tua falsa beleza, em que não vi Mais que os vícios que um dia me geraram E me perseguem desde que nasci.
Não fui eu que te quis. E não sou eu Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto, Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero. A voz com que te chamo é o desencanto E o esperma que te dou, o desespero.