Anarquias de uma paixão
Mais uma vez chego em casa e o teu caos já está instalado. Ainda bem, pois assim posso contemplar tua desordem. É na bagunça sensual de teus vestígios que descubro os segredos dos teus bastidores. Mesmo assim, o núcleo do teu tufão se revela como uma paisagem. Camarim de distrações.
Passo pela porta e teus sapatos, jogados ao revés, cansados de marchar sobre o desejo daqueles que te olharam durante o dia, recepcionam-se como cães desdenhosos. Sobre o sofá, tua bolsa aberta vomita restos de papéis, batom, escova e canetas que me espiam. Adubo de teus segredos.
Na área de serviço, tua lingerie estendida no varal revela a gama de personagens já interpretados por ti. Máscaras sem uso. Meu bordel esvoaçante.
Uma taça untada de vinho foi abandonada por ti sobre a mesa da cozinha. A marca de batom vacila se deve fixar-se ou não. Vitrine de tuas aquarelas.
Pelo caminho que me leva até nosso quarto, livros, revistas com marcações aleatórias de algo que tenha chamado tua atenção mostram que passastes por aqui. Teu casaco abraça minha cadeira onde trabalho. Sei que queres impor tua autoridade até sobre o que é inanimado em mim.
Suspensa sobre a nossa cama, tua meia-calça está prestes a cometer suicídio. O vestido desmaiado ao chão ainda conta com o calor do teu corpo. Brincos, anéis e pulseiras não te algemam mais. Genocídio de pudores.
Quando abro a porta do banheiro, estás nua sob a água quente com um sorriso de chuva para mim. Aquário das minhas vontades. Anarquia de minha vida.
* As obras que ilustram o texto são do artista italiano Pino Daeni (1939-2010)