Era uma festa de mulheres (não sei aliás se há festas mistas). Vestiram-me a preceito, com uma túnica e uma capa de cerimónia azul marinho com pequenos desenhos dourados, um cinto de lantejoulas e um lenço na cabeça (que, por mais apertado que fosse, caía de cinco em cinco minutos, até que desistiram e fui autorizada a tirá-lo). Olhavam para mim e diziam: 'Aaahhh...!', com um ar de orgulho e admiração pelo resultado final.
Fomos as primeiras a chegar e sentámo-nos em cima dos tapetes e cobertores dobrados e alinhados ao longo das paredes. E então começaram a chegar as mulheres. Eu tinha muita curiosidade em saber como seria aquele contacto mais restrito e íntimo com elas. Será que se riam? Falavam? E falavam de quê? Cada uma que chegava percorria a fileira das que estavam já sentadas, cumprimentando-nos uma a uma. Quando o número de mulheres ultrapassou os 30, achei que era o fim das saudações individuais, mas não. Fosse aperto de mão, beija-mão, beijo na cara ou qualquer uma das muitas modalidades da saudação berbere, era cumprido escrupulosamente.
Havia mulheres de todas as idades; eu estava ao pé das raparigas solteiras, que tocavam bendir e cantavam com voz de rancho, mas havia mães com crianças pequenas, mulheres de meia idade e outras já velhas, todas em traje festivo: era um mostruário maravilhoso de veludos, tules bordados, cetins brilhantes e uma ou outra camisa de dormir mais sofisticada. E no fim dos vestidos, visíveis sobretudo nas que estavam sentadas de pernas esticadas, as meias. As meias são um fenómeno quase tão curioso como o das camisas de dormir. Quase todas as mulheres usam soquetes curtos às florzinhas, aos elefantinhos, às borboletas, aos corações, aos cãezinhos, aos gatinhos, às nuvenzinhas. Olhei em volta e senti-me sozinha nas minhas meias azuis-escuras, sem graça - ainda por cima, lembrei-me de que tenho em casa umas meias vermelhas com umas florzinhas de lado. Imagino que todas aquelas meias venham da China, como as camisas de dormir. Vendem-se no mercado. Há umas, com uns padrões florais mais realistas, que são quase meias de vidro.
De cada vez que um bebé chorava, a mãe respectiva enfiava a mão pelo decote (decote redondo, pouco cavado), puxava a mama para fora (não tentem fazer isto em casa) e mantinha-o calado durante uns minutos. Um miúdo de cerca de um ano começou a andar pelo centro da sala. Deus me perdoe, como diria a minha avó, mas tinha ar de actor de filmes pornográficos. Eu sei que não pode ser, mas tinha. Era o olhar, e eu sentia-me desconfortável a olhar para ele, que me espreitava, desconfiado, pelo canto do olho. A rapariga ao meu lado chamou-o, abraçou-o e deu-lhe um beijo. Convém saber que aqui se beijam as crianças na boca, o que seguramente as torna imunes a muita coisa. Para meu horror, a rapariga virou-se para mim, virou-se para ele e disse-lhe que me desse um beijo. Que fique registado que eu gosto de crianças. Mas a perspectiva de beijar o campeão nacional de infantis pornográficos repugnava-me. O miúdo aproximou a cara da minha, sempre com aquele ar de quem no fundo está a pensar noutras coisas e me vai fazer algum convite esquisito, e eu consegui fazer um desvio estratégico e dar-lhe um beijo na bochecha. Se alguém achou estranho, tenho sempre a desculpa de ser estrangeira. Por estas e por outras é que não quero confundir-me demasiado com os nativos (embora em ambiente citadino já tenha sido tomada várias vezes por marroquina).
Depois veio a comida. Os anfitriões entraram com as mesas baixas, redondas, distribuíram-mas pela sala, trouxeram as tajines e o pão. As mulheres atracaram cada uma à sua mesa. Vistas assim, pareciam estar numa piscina, agarradas em círculo à volta das bóias, com os ombros e as cabeças a espreitar fora de água. De vez em quando via-as olhar para mim, como quem quer saber se como à mão como elas. Confirmado. Faz parte da hospitalidade insistir - muito - para que os hóspedes comam - muito. Quer isto dizer que mesmo que eu esteja em pleno acto de mastigação, há sempre alguém que me faz sinal e me dá ordem para comer mais pão, ou mais carne, ou mais cuscus. Ao princípio ficava baralhada - pois se eu estava a comer...?; agora, limito-me a sorrir e a fazer que sim. Não fui a tempo de ser a primeira a beber do copo de água (partilhado por todas as banhistas de cada bóia), que é uma táctica que tenho adoptado. Claro que, comendo todos do mesmo prato, trata-se de um preciosismo, mas gosto de beber antes de o copo ter bocadinhos de cuscus no bordo. Pois, porque depois da tajine vem o cuscus, que está para eles como o cozido à portuguesa está para nós. E eu por acaso já tinha almoçado em casa, duas horas antes. As que comem cuscus à mão (técnica que nunca experimentei, mas é fascinante: fazem pequenas bolas, do tamanho de bolas de golfe, na palma da mão direita, e depois empurram-nas para dentro da boca com um toque do polegar) acabam a refeição a lamber, não apenas as pontas dos dedos, mas toda a palma da mão, assim como quem lambe a colher de pau que se usou para fazer os bolos.
Lavámos as mãos e recomeçou a música. Tive medo, porque tinha a certeza de que em algum momento iam chamar-me para dançar. E sempre assim. A técnica é não resistir demasiado, para não dar ainda mais nas vistas. Tenho sobretudo receio de que queiram pôr-me a abanar as ancas freneticamente - coisa que elas fazem muito bem, com lenços atados à volta do rabo que acentuam o movimento e que, se tiverem lantejoulas, fazem um barulho simpático ao ritmo da música. Apostei que o perigo viria da Fatima, a mais espevitada, e acertei. Mas não me obrigaram a fazer a dança da anquinha. Limitaram-se ao haidouz, a dança do folclore tradicional do Alto Atlas, que até um estrangeiro pode fazer sem medo de ser filmado.
E afinal, as mulheres brincavam umas com as outras? Brincavam, sim, com palmadas no rabo e risinhos e tudo. E falavam muito. Só não sei se da ceifa do trigo, se da erva que tinham de ir cortar para as vacas quando saíssem dali, se do tempo, se do balde que o marido tinha comprado no souk (as mulheres não vão ao mercado), se do quarto ou quinto filho que iam ter, de casamentos e baptizados. E gajos? Também não sei, mas apanhei umas raparigas muito concentradas a comentar a fotografia do irmão mais novo da dona da casa.
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