sábado, 19 de dezembro de 2009

Quero ser uma ilha,
um pouco de paisagem,
uma janela aberta,
uma montanha ao longe,
um aceno de mar.
.
Quando precisares de sonho,
de um canto de beleza,
de um pouco de silêncio,
ou simplesmente
de sol... e de ar...
.
Quero ser o lado bom
em que pensas,
isto que intimamente
a gente deseja
mas nem sempre diz
- quero ser, naquela hora,
o que sentes falta
para seres feliz...
.
Que quando pensares
em fugir de todos
ou de ti mesma, enfim,
penses em mim...
.
J. G. de Araújo Jorge

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Cisne

Amei-te? Sim. Doidamente!
Amei-te com esse amor
Que traz vida e foi doente...

À beira de ti, as horas
Não eram horas: paravam.
E, longe de ti, o tempo
Era tempo, infelizmente...

Ai! esse amor que traz vida,
Cor, saúde... e foi doente!

Porém, voltavas e, então,
Os cardos davam camélias,
Os alecrins, açucenas,
As aves, brancos lilases,
E as ruas, todas morenas,
Eram tapetes de flores
Onde havia musgo, apenas...

E, enquanto subia a Lua,
Nas asas do vento brando,
O meu sangue ia passando
Da minha mão para a tua!

Por que te amei?
— Ninguém sabe
A causa daquele amor
Que traz vida e foi doente.

Talvez viesse da terra,
Quando a terra lembra a carne.
Talvez viesse da carne
Quando a carne lembra a alma!
Talvez viesse da noite
Quando a noite lembra o dia.

— Talvez viesse de mim.
E da minha poesia...

Pedro Homem de Mello, in "Adeus"

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

SAUDADE

Saudade de tudo!...

Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfas e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez ainha hoje espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...

GUIMARÃES ROSA

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

AHHH

Que Graça teria a vida
Se não houvesse a poesia?
Nascer, viver, morrer,
Misturar-se à terra fria,
Tornar-se um Fisico, um Quimico,
Um Doutor em Pediatria,
Um Pós-graduado em Farmácia,
Um Professor de Biologia,
Our concour em Matemática,
Um Mestre em Fisioterapia,
Que graça, me diz, que graça
Se não houvesse a poesia?
Ganhar bastante dinheiro,
Trabalhar dia após dia,
Fazer amigos, casar-se,
Ver aumentar a familia,
Viajar o mundo inteiro
Numa imensa romaria:
Ir do Rio à Nova Iorque,
De Nova Iorque à Bahia,
Da Bahia ao Himalaia,
Do Himalaia à Hungria,
Da Hungria à Machu Picchu,
De Machu Picchu à Turquia,
Da Turquia até Passargada,
De Passargada à Utopia,
De Utopia à Montes Claros,
Dali à Santa Maria,
Aprender mil idiomas,
Mil costumes, mil manias,
Conhecer gentes e modas
Saber de Reis e Rainhas,
Fotografar paisagens
Que jamais ninguém havia...
Trazer o mundo no bolso...
Mas que graça isso teria
Sem a graça de poder
Rimar cotia com tia,
Ler um verso de Quintana,
Ter Castro Alves como guia,
Carlos Drummond como amigo,
Ferreira como companhia,
Chico Buarque como Mestre,
Vinicius como Sinfonia,
Bandeira como delirio,
Pessoa como terapia,
Mário de Andrade como ouro,
Gulherme de Almeida como prataria,

Augusto dos Anjos como astro,
Cecilia como maravilha...
Que graça teria a vida
Se a vida tivesse tudo
Mas caminhasse esquecida
Da poesia?
DA
Romance de Dubrovnik

São estas casas de cinza
De cinza petrificada
É como se aqui a vida
tivesse jogado às cartas
e só a morte saíra
ganhando em cada jogada
É esta rua comprida
mas que se chama Platza
(embora em eslava grafia
se escreva apenas Placa)
e que na Ragusa antiga
já dois mundos separava
De um lado terra latina
e do outro terra bárbara
São as verdes gelosias
são as muralhas douradas
a segredarem que a vida
se inda quisesse ganhava
É agora ao meio-dia
a Porta Pile empilhada
E são cachos de turistas
trepando pelas muralhas
tirando fotografias
contudo não vendo nada
São fileiras de boutiques
São cafés sob as arcadas
É tudo a fingir que a vida
não se dá por derrotada
É no porto a maresia
quando mais avança a tarde
incrustada em cada esquina
suspensa de cada iate
Mas das naves bizantinas
é que ela sente saudades
e das galeras esguias
que Veneza lhe enviava
se bem que tal nostalgia
inda hoje a sobressalte
Nenhum sabor tem a vida
se a morte a não acicata
E são argolas vazias
as que há no porto à entrada
e de onde outrora pendiam
correntes sempre de guarda
Quem aliás adivinha
as marítimas estradas
que deste porto saíam
que neste nó se cruzavam
Com certeza agora vivem
na tinta azul de outros mapas
Ou permanecem cativas
Ou ficaram bloqueadas
São em redor tantas ilhas
tanta rocha tanta escarpa
tantas flutuantes ravinas
Mas quando a noite se abate
não são mais do que faíscas
no mar de prata lavrada
E já a Lua surgia
na sua rica dalmática
Nem mais a preceito vinha
do que no céu da Dalmácia
Será que o fulgor da vida
vem da morte iluminada
Subo ao monte Zarkovica
(Na língua serbo-croata
deve ler-se Djarkovitza)
e à sombra desta latada
bebo um copo de mastika
olho de novo a cidade
Ó memória empedernida
de uma divina morada
Ó ferradura de cinza
de algum cavalo com asas
Ó mediterrânea figa
mais propriamente adriática
que foi feita por Posídon
e no litoral deixada
O que a morte à vida ensina
através dos deuses passa
Mas não é só nas ruínas
que fica a sua pegada


David Mourão-Ferreira, in "Obra Poética 1948-1988"

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

"É preciso andar num sonho
e sentir a realidade,
além da própria imaginação
e do pulsar do coração.
Parar por instantes refletir
e ver que a vida continua a passar.
É a realidade banhada de amor
coberta de sonhos,
enternecida de felicidade.
Isso é ter a certeza de que
você ainda pode e deve
ir em busca de seus sonhos
para que se tornem realidade.”


(Ana Carolina


Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.

José Carlos Ary dos Santos

domingo, 13 de dezembro de 2009

Dava a última camisa por um poema

Dava a última camisa por um poema.
Domingo ao fim da tarde só restam cinzas.
Todos. Tudo inteiramente consumido. Tudo, o quê?
Segunda, sobrava alguma palavra intacta na lareira?

Terça
tão comprida como um ano

Quarta, outra vez a esperança
Não, sem poema não se pode viver!

Quinta a memória entra em pânico
A pouca claridade que restava anoiteceu

também na sexta as vagonetas com o meu minério
perdem-se no túnel.

Sábado:
trabalho em vão!
Domingo tudo recomeça e voltava a dar
a última camisa por um poema

Ján Kostra