sexta-feira, 23 de abril de 2010



É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade,

J. Krishnamurti




A lua rubra, rubra surgiu

Dos lados do Oriente, sobre o mar sonhador.

A sombria palmeira balança

Com o tombar da noite calma.

Ouve-se o grito distante de uma ave

Em vôo para o ninho.

Há o suave encrespar das águas frias

Batendo as praias cálidas.




Um coração carregado

De alegria pungente, quase dor.

Um coração de entendimento me é mister.




Um canto melodioso

Suave qual lamento

Vem das profundezas da sombra.

O ar tranqüilo da noite fica opresso.




Como a luz distante que tremula

Na torre escura do templo,

Por cima dos fiéis

E de suas preces sussurrantes,

Muito acima dos deuses silenciosos

Entre as suas moradias nevoentas,

Assim eu me tornei

Livre da mão que me empolgava,

Conquistador de tempos dolorosos

E de suas tristes vias.




Amigo,

Deixa de lado as complicações das crenças

Destrói as monumentais superstições

Do credo que te escraviza.

Porém, cresce na singeleza de teu coração,

Nas sombras do teu sofrimento.




Ó Bem Amado,

Meu coração pesa com teu amor.





miles davis



A UNIÃO SIMPLES

J. Krishnamurti




Escuta-me, Oh! Amigo

Sejas Yogi, ou Sacerdote ou Monge,

Um devoto amante de teu Deus,

Um peregrino em busca da ventura,

Banhando-te nos Santos Rios,

Freqüentando os Sacros altares,

O ocasional cultuador de um dia,

Um grande ledor de livros,

Ou um construtor de muitos templos;

Meu amor dói-me por ti,

Eu sei o caminho para o coração do Bem Amado.




Esta luta vã,

Este longo afã,

Esta tristeza intérmina,

Este prazer cambiante,

Esta dúvida que queima,

Este prezar da vida,

Tudo isso cessará, oh! Amigo.

Meu amor doi-me por ti.

Eu sei o caminho para o coração do Bem Amado.




Peregrinei pela terra,

Amei os reflexos,

Cantei, entoando em êxtase.

Cobri a fronte de cinzas,

Ouvi os sinos dos templos,

Envelheci no estudo,

Procurei.

Perdi-me?

Oh! sim, muito aprendi.

Meu amor doi-me por ti,

Eu sei o caminho para o coração do Bem Amado.




Amigo,

Amarás os reflexos

Quando eu posso propiciar-te a realidade?

Lança fora teus sinos, teu incenso,

Teus temores e deuses,

Põe de lado teus credos e filosofias.

Vem, põe de lado tudo isso.

Eu sei o caminho para o coração do Bem Amado.




Amigo,

A simples união é a melhor.

Este é o caminho para o coração do Bem Amado.





Eu Não Sou Poeta


Quem me dera saber
Fazer versos, rimar
Para um dia escrever
Que tu és a mulher que eu quero amar

Quem me dera fazer poesia
Inspirada na minha paixão
Inventar sofrimento, agonia,
Um amor de Platão

Quem me dera chamar-te de musa
Em sonetos e coisas que tais
Uma escrita solene e confusa
Com palavras a mais


Mas seu eu fosse poeta dotado
Ou se ao menos julgasse que sim
Falaria com um ar afectado
Aprenderia Latim

Só faria canções eruditas
E se as ditas ninguém entendesse
Rematava com frases bonitas
P'ro que desse e viesse



"Morte do Leiteiro".

Há pouco leite no país
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não pode obter nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la sempre nova do seu próprio íntimo, caso contrário ele arruina-se. Viver sem verdade é impossível. A verdade é talvez a própria vida.

Franz Kafka, in 'Conversas com Kafka'



Fernando Pessoa

Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.

-

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MOLESKINE




Moleskine é simplesmente um notebook de capas pretas envolvido por um elástico, que foi utilizado por diversos artistas e intelectuais. Desde Van Gogh, Matisse, Céline a Hemingway, todos perpetuaram suas notas num Moleskine e através dele moldaram a cultura que herdamos.

De uma forma ou de outra, nos dias que correm várias pessoas usam este notebook, quer pela utilidade, quer pelo fascino da marca, ou talvez com a vã esperança da inspiração divina. Não contesto de forma alguma o Moleskine, pelo contrário, acho-o extremamente elegante, prático e com uma óptima qualidade. O que considero verdadeiramente hilariante é vê-lo nas mãos de pessoas que não o usam, mas passeiam-no simplesmente pelo facto de se julgarem mais eruditos por andarem com um. Assim, como quem não quer a coisa, sempre se pode dar uma de intelectual e dizer que foi o notebook de Ernest Hemingway - sempre fica bem, não?

Durante um período da minha vida, usei Moleskine - falarei sobre isto oportunamente - mas actualmente, para que conste - chamem-lhe rebeldia - prefiro o papel de 100gr de um Winsor & Newtow. Uma fase, talvez.

quarta-feira, 21 de abril de 2010




Veneza

Sobre a ponte eu estava,
Há dias, na noite cinzenta
Ao longe ouvi uma canção:
Ela pingava gotas de ouro.
Pela superfície trêmula
Gôndolas, luzes, música -
Ébria ela nadou para a escuridão…
Minha alma, um alaúde,
cantou a si, invisível e ferida,
uma canção veneziana, e segredou,
trêmula de ventura colorida.
Será que alguém a escutou?

Friedrich Nietzsche


Os teus pés


Quando não te posso contemplar
Contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
Teus pequenos pés duros,

Eu sei que te sustentam
E que teu doce peso
Sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
A duplicada púrpura
Dos teus mamilos,
A caixa dos teus olhos
Que há pouco levantaram vôo,
A larga boca de fruta,
Tua rubra cabeleira,
Pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.


Pablo Neruda

segunda-feira, 19 de abril de 2010



Elixir da Vida


" Celebro-me e canto-me,

Aquilo que assumo tu deves assumir

Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também"


Walt Whitman


Flor da Paixão

Sei agora
que a paixão
é azul e coroada
como o sangue e a cabeça
das rainhas. Que tem
nome de flor
e é ímpar. Porque,
se o não fosse,
não seria paixão.

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"



A mulher submerge-se no banho

com a mesma doce espera

com que se aproxima do leito do amante

e se deixa fundir lentamente

na água tépida suave

Agua de carícia envolvente

que eleva os seios

e os balanceia

pontas que despertam as suas bocas vermelhas

mãos que se abrem como estrelas do mar

e navegam pensativas de um lado para o outro

e roçam de vez em quando as curvas do corpo

A cabeça é um nenúfar que se move

sobre a superfície da água

e na esperança dos olhos

crescem sonhos luminosos

que nenhum amante

poderá jamais cumprir.



Maria Wine