terça-feira, 15 de junho de 2010

Fernando Pessoa

Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar de um corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre sinto o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Alberto Caeiro

segunda-feira, 14 de junho de 2010

 

 

 

Otávio e Gustavo Pandolfo

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Pra quem mora lá, o céu é lá: o Brasil de Osgemeos em Lisboa

Há desses dias impressionantes. É possível estar-se perdido entre as antiguidades da Rua do Lavradio, jurar por alguns segundos ter se apartado da cidade, sentir o silêncio e o cinza. No meio da cidade e do engarrafamento axiomático da ponte Rio-Niterói, está, no fundo de um daqueles prédios antigos e maltratados, um imenso painel em preto e branco, entre a psicodelia e o bizarro. Seus autores: Otávio e Gustavo Pandolfo, nascidos ambos de um mesmo parto em São Paulo no ano de 1974, OSGEMEOS, é como são conhecidos. Vanguarda e tradição se misturam na StreetArt brasileira e expõem bem no Centro de um Rio de Janeiro arte poderosa e vertiginosa ao alcance dos olhos abertos ao maravilhamento.

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Pela primeira vez expondo dentro de um museu – havia já exposto do lado de fora do Tate Gallery, em Londres – os irmãos inauguram no Colecção Berardo em Lisboa a exposição Pra quem mora lá, o céu é lá, seleção de painéis e instalações, muitas interativas, que se espalham por duas salas e transbordam pelas ruas da capital portuguesa em um gigantesco mural feito sobre um prédio sem janelas.

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Otávio e Gustavo Pandolfo são realmente gêmeos, idênticos. Aos 12 anos, munidos de spray, vidros de desodorante, hiphop, tinta de carro e daquele credo adolescente de que se é intocável em um mundo ilimitado, produziram seus primeiros traços e personagens. A referência era e ainda é a cidade, é São Paulo diluído, tocado fogo e adocicado – tudo ao mesmo tempo – dentro de duas mentes cuja compreensão mútua nos escapa, Osgemeos tinham já ali seu universo de expressão que, com velocidade, foi se tornando maduro, original e reconhecível.

Os homens amarelos - tão amarelos quanto os que a Anita Malffati pintou há quase há 100 anos – o Nordeste tornado paulistano, são a chave. Personagens do êxodo, da busca, ponte entre o desenraizamento e a criação de novos afetos culturais. Esse elemento principal é que conduz ao folclore e, por ele, às cores, ao inusitado, ao pitoresco, ao mito de origem de um país que é pobre, que dói, mas que ri.

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Em 1993, pensando na possibilidade de viver do graffiti, os irmãos começaram a desenvolver trabalhos lá e aqui, decorando escritórios, publicidades e revistas. Mas o estilo latente carecia de referências para além dos metrôs e pichações urbanas. Elas vieram com o californiano Barry McGee, o Twist, que realizava um intercâmbio no Brasil e lhes apresentou o cenário mundial do grafite, técnicas e vastas possibilidades. Saíram então para sua primeira viagem pelo país, colhendo material e aprimorando e amadurecendo um estilo que se provaria único. O reconhecimento internacional não tardou e logo estavam com seus homens amarelos em Miami, Amsterdam e Londres. A exposição Vertigem, apresentada ano passado no Rio de Janeiro, me comoveu e a amigos. Os retratos de família, a fúria: ali também estava a minha história e o meu universo particular.

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O público de Lisboa terá agora a oportunidade de descobrir como esses fantásticos irmãos se desenvolvem em um ambiente talvez mais formal, mais acadêmico. A Streetart chega ao século XXI consagrada em museus. Otávio e Pandolfo, gêmeos idênticos e paulistanos irão certamente provar que a arte urbana não se limita por tão pouco, é o livre espírito de nosso tempo.