Florbela Espanca. Poesia viva e sexualidade à flor da pele
O realizador Vicente do Ó apresentou esta semana o filme “Florbela”, sobre a vida da poeta de Vila Viçosa. Vanda Marques falou com vários investigadores e professores de literatura para perceber o que tem de especial a poesia de Florbela. A viagem chegou ao Brasil
Divorciada, poeta, mulher capaz de usar calças num tempo em que isso era impensável, filha de uma mãe de aluguer e de um pai que a acarinha, a educa, mas não a assume no papel. Uma das sete alunas de Direito na Universidade de Lisboa, sem nunca conseguir ser respeitada pelos círculos literários e entrar pela ilustre porta dos iluminados da literatura. Maltratada pelo salazarismo, que a vê como uma mulher fácil. “O jornal católico ‘A Época’ considerava o ‘Livro de Sóror Saudade’, típico de uma “escrava de harém”, desmoralizador, escrito por uma Vénus impudica; ele incitava Florbela a purificar os lábios com ‘carvão ardente’”, explica Maria Dal Farra, uma das maiores especialistas na obra de Florbela Espanca.
Mesmo assim, Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, nascida em 1894, nunca foi esquecida, como provam as várias edições dos seus sonetos e contos. “Na literatura portuguesa, Florbela é até certo ponto uma voz isolada. No entanto, aquela energia passional, um bocadinho vulcânica, às vezes escancarada, elementar – parece continuar a comunicar directamente com os leitores, passando por cima dos críticos, da Academia... Toda a gente entende Florbela, toda a gente tem o seu lado Florbela”, diz Ana Luísa Vilela, professora de Literatura na Universidade de Évora.
A investigadora define o que a torna única: “O ADN da poesia de Florbela é o mal-estar dos 15 anos, quando a vida é demasiada e a gente não se entende. A energia terrível da adolescência está lá toda, nos versos dela, e nós amamo-la por isso. Nunca nos ‘curamos’ de Florbela: ela é, exactamente, incurável. Como nós.”
Maria Dal Farra, professora brasileira da Universidade do Sergipe, conhecida como a maior florbeliana, tem mais uma explicação. “A Florbela é uma grande comunicadora. Ela dizia que suas cartas de amor não eram mais que a sua necessidade de fazer frases! Há nos seus versos a passada de um laço de intimidade com o seu interlocutor que o torna preso dos seus encantos femininos e poéticos. Ela entorta o estereótipo, ela inverte a vassalagem amorosa, ela faz declaração de cio com uma espontaneidade que desarma, e tudo dentro de uma delicadeza e elegância primorosas. Ela tem um poder de sedução danado!” A sexualidade feminina até então no armário é transformada em poesia, é reclamada como direito e louvada como tal.
Claudia Pazos-Alonso, professora na Universidade de Oxford, que escolheu Florbela como objecto da sua tese de doutoramento, quando percebeu que a autora ainda era pouco estudada, sublinha que essa é uma das suas singularidades. “A forma como encara e verbaliza a sexualidade feminina é excepcional”, explica ao i, por telefone. Basta recordar uma parte do soneto “Tarde no Mar”, publicado em “Charneca em Flor”, em 1930: “E, sobre mim, em gestos palpitantes/As tuas mãos morenas, milagrosas/São as asas do Sol, agonizantes...”. “Sua poesia mostra-nos a perfeita combinação entre o interdito (legado imposto historicamente às mulheres) e a satisfação por expressar seus desejos mais recônditos”, explica Fabio Mario Silva, doutorando em Literatura, na Universidade de Évora, que destaca ainda a relação da angústia com a saudade, sempre presente.
Trabalhar a palavra José Régio foi dos primeiros a falar do trabalho de Florbela de forma séria. Chamava-lhe poesia viva, e não “um simples bordado, ou devaneio sentimental”, como os seus contemporâneos faziam, aponta Nuno Júdice, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.
Florbela trabalhava o soneto e apostava na sofisticação da língua. “A forma como ela usa o soneto vai extravasar o seu uso normal ”, defende Claudia Pazos-Alonso. “Há na sua poesia muitas leituras, de Paul Verlaine a Ruben Darío. Além disso, a questão da saudade nasce do seu conhecimento profundo da poesia portuguesa, e temos ecos de poetas, de Camões e António Nobre a Teixeira de Pascoaes, além dos contemporâneos com quem se correspondia (Raul Proença, Américo Durão, etc.). Não era portanto, em termos literários, nem uma ingénua nem uma autodidacta”, conclui Nuno Júdice. O professor de Literatura conta ainda que a descoberta mais interessante da obra de Florbela foi a de um heterónimo. “Um dos aspectos mais interessantes foi ver como existe a criação de um quase heterónimo: Soror Saudade – de quem ela fala como se fosse outra. Essa Soror Saudade é a forma de ela se distanciar do que nela é a pulsão amorosa, física, que a empurra para um amor que nada tem de ideal. Soror Saudade, pelo contrário, é a monja que dá corpo a um outro tipo de amor, mais espiritual e simbólico.”
Um dos aspectos que assombram sempre a sua poesia é a hipótese de Florbela Espanca ser bipolar. Conclusões para psicólogos, mas Claudia Pazos-Alonso aponta: “Não posso dizer com certeza, mas ela oscila entre os extremos: a exaltação e a depressão. Até dentro dos próprios livros, como Livro de Soror Saudade.”
Infância “Aos oito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida me davam vontade de chorar.” Florbela Espanca começou a escrever cedo, como a própria contou em cartas, e a sua primeira obra sai em 1919 – “Livro de Mágoas”, que se esgotou rapidamente. Tragicamente, o livro que os especialistas apontam como obra-prima é “Charneca em Flor”, publicado depois da sua morte, em 1930. É o provável suicídio que tragicamente a torna ainda mais conhecida. Maria Dal Farra defende que a polémica surge quando o seu editor faz crer que o suicídio, dois abortos, dois divórcios, o suicídio do irmão, a perda da mãe, estão nos poemas. Em parte é verdade, mas ela não deixa de ser uma poeta que trabalha a palavra. “Os seus admiradores queriam fazer crer ao leitor de então que sua obra era uma espécie de comentário à sua vida, e que, lendo-a, você estaria apto a compreender as razões da sua morte. O responsável por essa disseminação de marketing foi o Guido Battelli, que queria vender os exemplares do ‘Charneca’”, diz Dal Farra.
Lá fora José Carlos Fernández, autor de uma biografia de Florbela Espanca, editada pela Edições Nova Acrópole, descobriu a escritora quando chegou a Portugal, em 2004, e ficou apaixonado pela sua poesia, que diz semelhante à música de Chopin. “Não há nada de cacofónico, vulgar; as palavras fluem como a água pura de um regato de montanha; outro rasgo da sua poesia é a pureza das suas imagens, em que não há tramas intelectuais, senão uma leitura da sua própria alma, sem artifícios”, explica por email.
É fácil perceber que a dimensão de Florbela não é apenas nacional quando Maria Dal Farra nos conta como foi orientadora de diversas teses sobre ela. “Hoje em dia o meu Grupo do Diretório de Pesquisas conta com nove pesquisadores de diferentes universidades no Brasil, em Portugal e na Alemanha, reunidos em torno dela.” Fabio Mario Silva, brasileiro que estuda a obra da autora, conta por experiência própria que Florbela é mais estudada lá do que cá. “Os autores portugueses muitas vezes são mais reconhecidos fora de Portugal. A obra de Florbela Espanca foi mais bem tratada no Brasil. Há imensas dissertações de mestrado e teses de doutoramento feitas e em curso no Brasil. A maior especialista florbeliana é a professora brasileira Maria Lúcia Dal Farra, que há anos vem apresentando trabalhos na academia, lutando contra essa invisibilidade académica portuguesa. No entanto, o leitor português, esse sim, lê muito Florbela.”
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