segunda-feira, 28 de maio de 2012

Veneza: uma cidade criada por quem a vê

 

 

Veneza é tema e cenário para narrativas e mitos que marcaram a história. Mais do que qualquer outra, ela foi recriada, ao longo dos séculos, pelos olhares de quem a pintou, escreveu, fotografou.

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© Canaletto, "O Grande Canal e a Igreja da Saúde", óleo s/ tela (1730), Museu das Belas Artes de Houston.

Se não “a mais...”, Veneza é talvez “uma das mais” literárias e representadas cidades da Europa. É, por certo, impossível listar a fortuna literária, artística e histórica cujo pano de fundo é estampado por esta cidade, sempre referida pelos seus canais onde navegam, além de suas célebres gôndolas, mistérios e mitos populares.

Desde o século XV e XVI, a “Sereníssima”, como era conhecida a atual cidade de Veneza, antes uma República pacífica, tinha ares de “recinto de férias e descanso”. As águas que a recortam e perpassam são entendidas como verdadeiros atores de influência em sua cultura, hábitos cotidianos e, inclusive, produção artística. Veneza teve uma produção artística rival da de outra grande República italiana, Florença. Os florentinos defendiam o primado do desenho; já os venezianos contrapunham a supremacia da cor. Há quem diga que tudo isso se deveu a influência do contato direto e cotidiano com as águas dos canais e do mar - que garantiu, por sinal, a soberania econômica desta cidade durante tanto tempo, se comparada às outras províncias da Península Itálica naquela altura.

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Jessica e Shylock, personagens de "O mercador de Veneza", num quadro de Maurycy Gottlieb

O século XVIII, dando agora um salto na História, nos legou a obra de Canaletto, pintor rapidamente recordado pelos delicados e cuidadosos panoramas venezianos. O século XIX, por seu lado, nos deu uma visão duplicada de Veneza: de um lado a cidade surge cercada de mistérios, de histórias assombrosas de afogamentos, de crimes, mas por outro de amores trágicos, de sofrimentos e até mesmo, por vezes, de decadência, visão essa que, de alguma maneira vai ecoar no século seguinte, nas palavras de Sartre e Mann. Basta lembrarmos que, séculos antes, em “O Mercador de Veneza” (1596-1598), de Shakespeare, o drama e a decadência já eram a atmosfera predominante, embora a peça seja considerada uma obra-prima da comédia. Do mesmo autor, em “Otelo, o Mouro de Veneza” (c. 1603) são a inveja e a ruína humana que encontram os seus lugares. Mais tarde, no século XIX, nasceu a Bienal de Veneza (1895), hoje uma das exposições de arte mais importantes do mundo.

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Tintoretto, "Triunfo de Veneza" , óleo s/ tela (1584), Palácio Ducal de Veneza (detalhe).

A alvorada do século XX mostra-nos conscientemente Veneza segundo todo o peso das histórias nas quais a cidade foi assunto, tema ou cenário. Desde Thomas Mann, no início do século, com a "Morte em Veneza", a Sartre, que dedicou à cidade um conjunto de ensaios, entre os quais “O Sequestrado de Veneza”, sobre Tintoretto, pintor que nasceu e sempre trabalhou em Veneza. É deste livro o primeiro dos trechos literários selecionados que seguem.

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“...em Veneza nada é simples. Pois não é uma cidade, não: é um arquipélago . Como poderíamos esquecer? De sua ilha, você olha a ilha da frente com inveja: ali, há... o quê? Uma solidão, uma pureza, um silêncio que não há, você juraria, do lado de cá. A verdadeira Veneza, onde quer que você esteja, está sempre em outra parte. Para mim, ao menos, é assim. Normalmente, contento-me com o que tenho mas, em Veneza, sou presa de uma espécie de loucura invejosa; se não me contivesse, estaria o tempo todo nas pontes ou nas gôndolas, procurando desvairadamente a Veneza secreta da outra borda. Naturalmente, assim que a abordo, tudo desvanece; me volto: o mistério tranquilo formou-se novamente do outro lado. Há muito me resignei: Veneza está lá onde não estou”.

SARTRE, Jean Paul. Veneza de minha janela. In.: O sequestrado de Veneza. – São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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Fotograma do filme de Visconti "Morte em Veneza".

“Finalmente ele o revia, o mais incrível desembarcadouro, aquela deslumbrante, fantástica composição arquitetônica que a República oferecia ao olhar atônito e cheio de veneração dos navegantes que dela se aproximavam – imponência etérea do Palácio, a Ponte dos Suspiros, as colunas à beira d’água com leão e o santo padroeiro, o perfil da fabulosa catedral sobressaindo suntuoso, o portal e o gigantesco relógio, que se deixavam entrever – e, enquanto o contemplava, Auschenbach ponderou que chegar a Veneza de trem, vindo por terra, era o mesmo que entrar num palácio pela porta dos fundos, e que jamais alguém deveria aproximar-se da mais incrível de todas as cidades a não ser de navio, atravessando o mar, como o fizera agora”.

MANN, Thomas. Morte em Veneza. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

“De novo, na imaginação eu te contemplo! Mais uma vez teu vulto se ergueu diante de mim... Não, não como te encontras, no frio vale, na sombra!, mas como deverias estar, dissipando uma vida de sublime meditação naquela cidade de sombrias visões, tua própria Veneza, que é um Eliseu do mar querido das estrelas, onde as amplas janelas dos palácios paladinos contemplam, com profunda e amarga reflexão, os segredos de suas águas silenciosas”.

POE, Edgar Allan.

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