terça-feira, 4 de maio de 2010

Alguém se tinha esquecido de me dizer que os banhos continuavam operacionais, que não eram apenas um monumento antigo que se podia visitar. A mulher no guichet de entrada pediu-me o dinheiro e apontou-me uma porta modesta com a tinta castanha estalada, a destoar do edifício de pedra antiga e paredes muito altas, uma obra de arquitectura discreta e elevada. Sempre obediente, fiz sinal ao cão para que me esperasse, e entrei, achando que o dinheiro era pela visita.


Dei por mim numa sala escura com um balcão alto, sem janelas, apenas com outra porta, que abri após dois segundos de hesitação. E eis-me numa outra sala, ainda mais quente, com bancos corridos e alguns cabides ao longo das paredes, e uma terceira (ou quarta?) porta. Que abri também, para dar comigo numa divisão quente e cheia de vapor, com as paredes de pedra muito alisada e o chão molhado; após alguns instantes a tentar perceber que jogo de portas e passagens era aquele, vi, apesar dos óculos embaciados, uma mulher nua passar com um balde na mão, arrastando atrás de si uma gargalhada que a humidade distorcia até parecer um miado. Passou, e desapareceu por um corredor ao fundo.

Fez-se luz no meu espírito, e voltei para trás. Na primeira sala estava agora uma mulher ao balcão, que me chamou e me passou para as mãos uma toalha minúscula, vermelha e branca. Fiz-lhe sinal de que não queria: eu só tinha vindo para ver, tinha-me enganado, tentei explicar que não me tinha preparado para aquilo, mas ela, com convicção inabalável e talvez vingando-se das contrariedades da vida, fez-me dar-lhe mais algumas moedas a troco de dois pequenos pacotes de sabão e champô, e uma luva áspera de banho, e despachou-me de volta à segunda sala.

Entrei para o balneário pensando como me tinha deixado convencer. Sabia que o banho turco, o verdadeiro, não tinha muito a ver com as nossas cabines esterilizadas de ginásio; conhecia relatos que me inspiravam terror e tinha visto fotografias e vídeos de homens de cara contraída a quem os 'banheiros' quase literalmente arrancavam o couro, torciam braços e pernas, espremiam as costas e rodavam o pescoço mais do que a natureza permitia, com a energia e a desenvoltura de quem está a amassar pão ou a esfolar um coelho. A isso davam o nome de banho com massagem e tratamento especial.

Despi-me e fiquei contente por tirar os óculos; sem eles, ia sentir-me menos observada, embora nem por isso menos alienígena. A ideia de que é quando estamos nus que somos mais iguais nunca me pareceu tão absurda. Passei a primeira sala de banho, tentando não escorregar no chão molhado, e comecei a suar. Na segunda, ainda mais quente, havia no tecto uma pequena clarabóia central, um umbigo para o céu, e por ela entrava um fio de luz que escorria, lento como azeite, sobre uma plataforma de pedra poligonal. Aí estavam sentadas ou deitadas as mulheres, nuas também - todos os tamanhos e feitios de corpos, todas as variações de tons de pele, alturas de pescoço, o côncavo e o convexo de cada barriga, cores e diâmetros de mamilos, larguras de ombros e vincos nas colunas, cicatrizes abdominais, separadas umas das outras por cortinas de vapor, numa intimidade indiferente e tranquila a que era suposto eu juntar-me.

Pensei em lady Mary Montagu, cujas descrições de testemunha ocular corroboravam a visão de Ingres; mas apenas parcialmente era verdade o que eles diziam (ou eram outros os tempos), porque não havia música, mas sim vozes quotidianas e ásperas, risos sem pretensões, sons de água em jorros pesados a ecoar no chão. Não havia sequer uma luz rosada que transmutasse a carne de todos os dias em arte, e tudo era escuro e prosaico e eu não sabia como comportar-me, o meu olhar não sabia onde ou como pousar sem se sentir promíscuo, e muito menos em mim mesma. Ao longo das paredes havia pequenos cubículos mais resguardados com tanques cheios de água, onde as mulheres se lavavam, esfregando-se vigorosamente, sozinhas ou umas às outras. Era um acto prático, a higiene máxima do corpo, uma prescrição religiosa, um momento de vigilância, sem o voyeurismo a que eu não conseguia fugir, habituada ao pudor da higiene privada, sentindo que cada poro meu provava que vinha de longe.

Percebi que algumas mulheres me olhavam, e era provável que houvesse sorrisos ligeiramente trocistas pela minha incompetência. Aquela intimidade, embora forçada, começava a acomodar-se-me ao corpo e ao espírito com a mesma leve tontura libertadora com que o vapor me entrava na pele. Disse para mim mesma que sabia tomar banho tão bem como qualquer outra pessoa, nem que essa pessoa fosse de Fava. Estendi-me sobre a pedra, como se soubesse o que estava a fazer; a obscuridade e o calor obrigavam-me a respirar devagar, e fiquei a ver o filme interminável da luz da clarabóia a enroscar-se nos farrapos de vapor que subiam.

Acordei com a voz duma mulher que me fazia sinal para saber se eu queria a massagem. Decidi levar a experiência até ao fim. A mulher tratou-me com a perícia de um talhante, e em momento algum eu conseguia prever onde ia assentar as mãos implacáveis. Pôs-me um óleo que me fazia deslizar na superfície da pedra como se fosse eu mesma uma barra de sabão a desfazer-se lentamente. Quando terminou (braços e pernas espremidos, coluna apertada e esticada e apertada e esticada), senti-me como se me tivessem desmontado em peças, lubrificado e recomposto, agora com tudo no sítio certo. Fui para um dos cantos resguardados, lavei-me e segui as portas até ao balneário, vesti a minha roupa, que agora me parecia ser de outra pessoa, e saí para a luz demasiado forte.

Iyi?, perguntou-me a mulher à entrada. Magniiiific, respondi eu, sorrindo. E ela levantou os braços, como eu tivesse triunfado de toda a porcaria do mundo. Poucos metros à frente, o Maritsa passava, e imaginei que levava consigo a água dos banhos, turva e ainda morna como a roupa de um dia longo acabada de despir.

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